Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Buenos Aires: o rio de modorra e barro, o camelo do Profeta, o bairro que foi arrabalde

Perambulando pelo bairro que foi arrabalde, lembro com assombro um alexandrino arcaico de Borges

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Quarta-feira. Do avião, o rio da Prata é de modorra e barro. Proas ibéricas o cruzaram para fundar à beira do pampa a cidade que se quis europeia e não escapou ao desolado destino latino-americano: uma inflação anual de 104%.

Logo, é preciso entrar no esquema. Vai-se com um bolo de reais no bolso e a cambista indicada por amigos o troca por um inacreditável pacote de pesos. Paga-se tudo em espécie, porque o câmbio, por ora, nos é favorável. O destino latino-americano não.

Fui à Islândia, à Lapônia, à Nova Zelândia e três vezes ao Japão, que conheço melhor que Moema, e nunca a Buenos Aires. Fico em Palermo, numa pousada cujo pátio é como um jarro fundo de água côncava, um declive que canaliza o céu acima e serve de metáfora para o universo.

Perambulando pelo bairro que foi arrabalde, lembro com assombro um alexandrino arcaico de Borges: "Guatemala, Serrano, Paraguai, Gurruchaga". São nomes de ruas indolentes de Palermo, enternecidas pela penumbra do crepúsculo.

Quinta. Tinha esquecido como é feio "Abaporu", de Tarsila. Não chega ao grotesco de "Festa de São João", de Portinari, e "Mulheres com Frutas", de Di Cavalcanti, também expostos no Malba. Mas é absurdo que valha US$ 40 milhões. Seria demais até se fossem 40 milhões de pesos.

La Cabrera é uma churrascaria com esquema para fregueses. Eles furam a fila e os turistas aguardam na calçada, bebendo um vinho que atenua o frio e a espera. Vale a pena. A carne maturada a seco é de comer de joelhos, chorando.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 16 de junho de 2023 - Bruna Barros

As labaredas, os rostos corados, os facões, a ruidosa alegria e a carne sangrando atestam que o jantar é um rito elementar da humanidade. A crise climática fez crescer a preocupação ambiental e o número de vegetarianos. O adeus aos prazeres da carne aumenta a inflação argentina?

Sexta. A Casa Rosada é ocre. Em frente, uma barraca indígena aguarda há anos uma audiência com o presidente. Cartazes feministas povoam os postes. Em lugar nenhum se protesta contra a inflação ou se pede salários melhores.

La Callas sugeriu El Ateneo, livraria que foi teatro. Deve ter dado a dica a muitos porque estava cheia de brasileiros. Com a falência da Livraria Cultura, eles vão lá. A tradução de "Borges Babilônico", organizado por Jorge Schwartz, está à mostra com destaque. Merece, muito.

"La Bruja de Hitler" fala de nazistas mocozados na Patagônia. Pululam tiques modernosos: figuras granuladas, câmera tremebunda, desfoques rococós, close-ups impertinentes. O fascínio com a estética nazi enche o filme e esvazia a crítica.

O narrador de "O Outro Céu", de Cortázar, entra numa galeria portenha e sai numa parisiense. Tentei fazer o mesmo, fracassei. Talvez porque as galerias sejam agora um misto de shopping center e duty free. Mercadorias, rumores, espelhos e odores são idênticos.

Sábado. Puerto Madero tem cervejarias, escritórios, restaurantes e apartamentos –tudo de luxo. Passou por uma revitalização seletiva que, ao contrário do cais carioca, deu certo. Já São Paulo abdicou de qualquer planejamento e entregou-se a incorporadores que compram prefeitos e vereadores.

A protagonista de "Blondi" é uma maconheira boa praça que não quer que o filho adolescente cresça. Se essa for uma questão social que leva gente ao cinema, a Argentina está pior que parece.

El Cuartito serve pizzas celestiais desde 1934. As paredes são tomadas por flâmulas, retratos de Gardel, anúncios de cerveja, camisas autografadas de Maradona e Messi.

Na mesa ao lado, um tipo se pôs de pé para contar com gestos largos um caso aos amigos. Tem razão o colega da Cozinha Bruta: a pizza é popular, não um prato para gente de colete puffer.

Domingo. O zoológico virou ecoparque. Restaram uns patos magoados e as brejeiras maras do pampa. Mas eis ali um bicho majestoso, apesar de estar sentado, mascar e ter duas corcovas –um camelo.

Numa página famosa, Borges lembra que o Corão, o mais árabe dos livros árabes, não fala nunca de camelos. A ausência comprova a verdade arábica do alfarrábio: se o camelo era corriqueiro na paisagem, não havia por que o Profeta o mencionar.

Borges conclui que o escritor periférico deve fugir da cor local e do pitoresco. Tem também de se afastar das metrópoles centrais e, plantado à margem, falar de temas universais "aos homens que nesta terra se sentem viver e morrer, não aos que creem que o Sol e a Lua estão na Europa".

Segunda. Os dias passados em Buenos Aires foram ilusórios, sempre estive e estarei em São Paulo.

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